quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A odisséia de Francisco


Francisco acordou subitamente de um sonho perturbador ao som do alarme que ele havia programado em seu smartphone eletrônico com tela sensível ao toque. A tela não parecia estar muito sensível, ou seu toque poderia não estar sendo muito preciso, mas ele precisou de vários segundos para conseguir pressionar o pequeno botão de soneca que desligaria o alarme durante dez minutos. Essa era uma das pequenas tolices que ele sempre fazia: ajustava seu despertador para despertar uma hora antes do horário em que iria acordar de fato e passava a hora inteira acordando, pressionando o botão de soneca e voltando a dormir até que o alarme voltasse a tocar dez minutos depois. Por alguma razão ele achava que acordar seis vezes era melhor do que dormir uma hora a mais e acordar só uma vez. Mas estou desviando do assunto. Permita-me retomar.

Francisco acordou subitamente pela sexta vez de um sonho perturbador. Abriu os olhos com dificuldade de mante-los abertos. Olhou em volta de sua cama. Metade dos cobertores estava jogada no chão, a outra metade amarrotada em uma bola ao seus pés. Ele não se lembrava direito como, mas em algum momento durante a noite quando seu corpo se encontrava completamente descoberto ele, no torpor de seu sono perturbado, cobriu-se com a primeira coisa que conseguiu encontrar ao apalpar o redor de sua cama, uma toalha molhada. Novamente desviei do assunto. Não acontecerá de novo.

Francisco acordou subitamente pela sexta vez, com frio, de um sonho perturbador. Atirou sua toalha molhada para longe e sentou-se na beira da cama. Enfiou seus pés em um par de chinelos de borracha, de um modelo muito popular na época. Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, tomando cuidado para não tropeçar nos lençóis e na toalha jogados no chão.

O banheiro era um pequeno recinto que todos as habitações do edifício em que ele vivia continham. No canto do banheiro havia um pequeno setor separado do resto do recinto por uma cortina de material sintético. Atravessou a cortina, girou um pequeno registro metálico engastado na parede e de um dispositivo preso ao topo da parede começou a jorrar água fria. Teria saído água quente se Francisco tivesse trocado a resistência elétrica, um simples pedaço de arame longo enrolado helicoidalmente. Como esse pedaço de arame estava fazendo falta, Francisco pensou enquanto exclamava expletivos pouco honrosos durante seu banho. Não ficou mais feliz quando reparou que a única toalha disponível para se secar era a mesma toalha fria e molhada que foi testemunha de seu sonho perturbador.

Saiu do banho e caminhou em direção à pia, um pedestal de porcelana com uma bacia no topo onde também havia um registro metálico que permitia a saída de água por um duto metálico, na época conhecido como “torneira”. Abriu o registro da torneira, molhou a escova que utilizava para limpar seus dentes e esparramou sobre suas cerdas uma pasta esbranquiçada, um gel contendo cálcio, flúor e extrato de hortelã, que ele depois esfregou vigorosamente contra seus dentes. Olhou-se ao espelho enquanto fazia isso e, só para variar um pouco, tentou usar a mão esquerda para segurar a escova. Sentiu muita dificuldade e desistiu. Cuspiu na pia a espuma que havia se formado durante a escovação e retirou a tampa de uma pequena garrafa que estava disposta sobre uma prateleira de vidro abaixo do espelho. Na garrafa havia um líquido azul, do qual ele sorveu o suficiente para encher sua boca e ficar bochechando. Fez uma cara de angústia por causa da dor excruciante que esse líquido lhe causava enquanto matava as bactérias de sua boca e deixava seu hálito fresco, e quando julgou que seu sofrimento já havia sido suficiente cuspiu na pia.

Voltou para a sala, minúscula, que servia também como quarto e cozinha. Foi até um armário vagabundo de compensado de madeira que já havia se mudado de apartamento pelo menos quatro vezes junto com o dono, e de lá retirou uma camisa de algodão branca e uma calça social cinza. Retirou de uma gaveta uma gravata, uma cueca e um par de meias e vestiu-se, chutando os lençóis e a toalha molhada para cima da cama. Se ele pendurasse a toalha depois de usá-la talvez não correria mais o risco de padecer de frio ao enfrentar seus sonhos perturbadores. Mas enfim, a cabeça de Francisco vivia em outras coisas. Terminou de se vestir, pegou sua carteira e suas chaves de cima de uma pequena mesa que estava ao lado da porta e colocou-as em seu bolso esquerdo. Pegou uma pequena garrafa metálica que também estava sobre a mesa e colocou em seu bolso direito. Deu uma olhada em volta de seu apartamento, não sei ao certo para quê, talvez para se certificar de que a bagunça estava do mesmo jeito de sempre. Francisco não era um cara muito organizado.

Francisco desceu pela escada os três andares até o térreo. Era muito comum os prédios possuírem elevadores, pequenas cabines metálicas equilibradas através de um cabo por um contra-peso que permitiam aos moradores e visitantes subirem aos andares superiores com pouco esforço. Mas o elevador do prédio do Francisco raramente funcionava, então não lhe restava outra opção do que galgar os degraus de a três por vez.

Quando chegou à rua, virou à direita e caminhou até a esquina. A cidade onde morava era considerada de médio porte para a época. As casas, prédios e estabelecimentos comerciais eram organizados em quarteirões, que por sua vez eram separados entre si por ruas de asfalto por onde circulavam veículos motorizados para as mais diversas finalidades, desde o transporte de pessoas até o transporte de cargas. Muitas pessoas possuíam estes veículos motorizados para uso próprio, seja de duas ou quatro rodas, mas as ruas de asfalto não comportavam uma quantia tão grande desses veículos, o que fazia com que boa parte da população começasse seu dia dentro de seus veículos em filas imóveis distribuídas pelas ruas da cidade. Francisco nunca quisera ter um veículo motorizado. Ele se contentava em caminhar ou usar o transporte público e, quando o lugar ao qual queria se dirigir ficasse realmente longe, ele usaria um veículo de duas rodas cuja energia de propulsão era provida por suas próprias pernas: seu patinete. Enfim, apesar do que prometi, não consegui evitar ter desviado do assunto principal. É que a vida de Francisco nos seus mínimos detalhes é muito interessante. Peço desculpas novamente, sabendo que ninguém vai acreditar em mim se eu prometer que não vai acontecer de novo. Mas prometo que não vai.

Francisco tinha o hábito de tomar um café e comer um pão de queijo a caminho de seu trabalho. O café era barato e abundante naquela época, e era apreciado e consumido com um fervor que parecia religioso. Era muito comum na época grupos de amigos se reunirem para tomar um café e ficarem apenas conversando sobre bobagens. O pão de queijo era abundante também, embora o apelo de se reunir com os amigos para comer pão de queijo não fosse tão grande assim.

Francisco comprou seu café da manhã em uma pequena lanchonete de esquina. Devorou o pão de queijo, engoliu seu café puro sem açúcar e voltou para a rua, revigorado. O dia estava ensolarado, o céu azul sem o menor indício de nuvens. Os prédios em volta, enormes estruturas de aço, cimento e vidro, observavam do alto as minúsculas pessoas correndo em direções semi aleatórias como se sua pressa ou lugar de destino fossem fazer diferença no grande esquema das coisas. Faltava humildade a estes prédios horrendos e desprovidos de empatia, que não percebiam que muitos deles não durariam mais do que as próprias pessoas insignificantes que com tanto desprezo eles observavam. Provavelmente alguns deles seriam derrubados para dar origem a outros prédios, feitos com formas e técnicas mais modernas mas ainda feitos do mesmo aço, cimento e vidro. Em sua arrogância juvenil, estes novos prédios criticariam seus antecessores, destacando talvez a falta de beleza e de harmonia das formas quadradas e minimalistas daquela arquitetura arcaica, mas quando sua própria tinta estiver descascando, suas vigas trincando e as bolas de demolição preparadas para abrir o espaço para as novas gerações, estes mesmos prédios vão descobrir o que o ciclo da vida é tão cruel e inexorável para os prédios quanto o é para as pessoas.

Francisco olhou para os prédios e se sentiu observado. Era de se esperar, afinal em cada janela poderia haver pelo menos uma pessoa, e das centenas de pessoas que poderiam estar ocupando tais janelas uma delas estaria fadada a estar olhando para a direção de onde Francisco vinha. Ele gostava desta sensação. Mesmo que não houvesse ninguém olhando, ele gostava de imaginar que havia, por isso enquanto ele caminhava pela rua gostava de fixar seu olhar para janelas aleatórias e acenar ou sorrir para elas. Pode parecer um hábito esquisito, mas receber um sorriso ou cumprimento de alguém, mesmo de um desconhecido total, tem um efeito transformador sobre as pessoas. Milhões de anos de evolução causaram isto na espécie humana, por isso mesmo que raramente alguém sorrisse ou acenasse para o Francisco ele gostava de usar esta forma simples para tentar transformar pessoas a sua volta, sejam conhecidas ou desconhecidas.

Francisco chegou a uma esquina e preparou-se para atravessar a rua. Observou atentamente as luzes do semáforo. A luz de cor verde acenderia quando ele estivesse autorizado pelas convenções civis a atravessar a rua. A luz ficou verde e Francisco começou a travessia. Quando estava para chegar ao outro lado, foi surpreendido pela figura maltrapilha de um andarilho, tão comum nos ambientes urbanos. O andarilho vestia roupas sujas e rasgadas e pés descalços. Seu odor, decorrente de semanas sem tomar banho, podia ser sentido desde longe, embora estivesse mesclado com o mesmo aroma fétido da própria cidade. Seu cabelo era longo e oleoso, sua barba suja e desgrenhada. De seu nariz escorria um pequeno filete de muco que era coletado pelo seu bigode imediatamente abaixo. O andarilho fixou seu olhar em Francisco, um olhar sério, penetrante, inflexível. Francisco parou imediatamente, a cerca de três metros do andarilho, e retribuiu o olhar. Em volta as pessoas caminhavam desviando deles como se não existissem, sem perceberem o drama humano que se desenrolava naquele exato lugar.

Francisco manteve-se imóvel enquanto encarava o andarilho, que também estava imóvel. Uma disputa de vontades estava em andamento e nenhum dos dois iria ceder. Um observador atento verificaria que, tal qual em um duelo de um filme de faroeste, ambos moviam suas mãos quase imperceptivelmente em direção aos seus bolsos, como se cada um deles quisesse sacar uma arma invisível. Francisco ainda estava na rua, a poucos metros de terminar de atravessá-la. A luz do semáforo permanecia verde, o que por ora lhe garantia segurança. Mas em breve esta luz se apagaria e a luz vermelha acenderia, então ele teria que fazer algo.

A tensão era palpável. O olhar do andarilho transbordava de fúria, ou seria mais uma mistura de aflição, medo diante do desconhecido, cinismo e falta de otimismo decorrentes de mais de uma década vivendo na rua. Não que nunca se lhe tivesse sido oferecido alojamento em albergues especialmente designados para aquelas pessoas sem destino, sem famílias ou que simplesmente um dia decidiram deixar de viver dentro das regras da sociedade. Porém o andarilho, apesar de tudo, sempre atendia ao chamado das ruas, que clamavam por seu nome toda vez que sentiam sua falta. Ele não era homem de negar o pedido.

Mas neste momento nada mais importava. À sua frente estava aquele ser engravatado, imóvel, atento a cada um de seus movimentos. Só uma coisa podia ser feita.

O tempo parecia ter parado. Francisco e o andarilho encaravam-se, cada um deles esperando que o outro fizesse o primeiro movimento. Poderiam ter ficado assim por horas, mas no canto do olho Francisco viu a luz do semáforo verde se apagando e nesse momento soube que tinha que agir. Pegando o andarilho desprevenido, Francisco rapidamente colocou sua mão em seu bolso direito e de lá retirou uma pequena garrafa de metal. Enquanto fazia isso deu três passos em direção ao andarilho que, pego de surpresa, rapidamente começou a apalpar seus farrapos, como se procurando algo em um bolso que ele não conseguia localizar. Francisco aproximou-se, rapidamente fez um drible pela direita e, enquanto ultrapassava o andarilho, apertou a tampa da pequena garrafa que segurava. Embutido na tampa havia um pequeno orifício de onde saiu uma nuvem de um vapor úmido, saturado de anti-transpirantes e perfumes desodorantes. Francisco em movimentos rápidos cobriu o andarilho nessa nuvem e, em frações de segundo já estava de novo em seu caminho, afastando-se tão rápido quanto havia se aproximado. O andarilho, com fúria em seu olhar, finalmente havia conseguido encontrar o objeto que estava procurando, embora tarde demais. “O maldito me paga”, pensou. “Na próxima vez eu pego ele”, prometeu, enquanto colocava a galinha de borracha de novo em seu bolso e rosnava para algumas moças que agora se sentiam inexplicavelmente atraídas por aquele homem cheiroso em seus farrapos.

Francisco apenas reduziu sua velocidade quando já havia dado volta à esquina. Pensou em como havia escapado por pouco e em como a cidade estava ficando perigosa. Apalpou seus bolsos em busca de seu smartphone, que além de ser um despertador permitia também conversar à distância com pessoas que tivessem aparelhos similares. Com ansiedade percebeu que não conseguia encontrá-lo em seus bolsos. Ele havia esquecido seu aparelho em casa. Pensou em voltar para buscá-lo, mas não valia a pena o risco de outro confronto como aquele que acabara de enfrentar, então desistiu da ligação que iria fazer e decidiu seguir adiante.

Após uma caminhada de mais dez minutos, Francisco chegou ao seu local de trabalho, situado em um edifício alto e robusto, com a fachada de tijolo aparente e vidro. Esse edifício se destacava dos edifícios em volta, não por sua beleza mas pelo fato de que todos os seus vidros eram dourados brilhantes. Ao longo do dia, uma mancha dourada causada pelo reflexo do sol nestes vidros banhava a rua e as pessoas abaixo, deslocando-se lentamente junto com a trajetória do sol no céu. O jovem arquiteto recém formado que foi encarregado de projetar este edifício pretendia com isto evocar sentimentos de grandeza e majestade às pessoas que admirassem sua obra, mas o efeito fora perdido completamente quando uma fonte com a enorme estátua de um porco foi instalada no pátio de entrada do prédio. Elpídio Machado, o magnata que encomendou o prédio, fora inflexível quanto à instalação dessa fonte, que serviria para todos os que passassem pela frente como um símbolo do ramo que lhe trouxera fortuna. Enfim, o porco jorrando água pelo focinho banhado na cor dourada do reflexo do sol nas janelas do edifício lembravam mais um quadro surrealista de Salvador Dali do que um majestoso palácio de ouro e pedra, para infelicidade do jovem arquiteto, mas isto não chegou a ser um problema porque ao decidir que sua vocação era outra ele largou a arquitetura para tocar em uma banda de rock e ele acabaria sendo muito mais feliz assim.

O prédio era inteiramente dedicado à gestão das indústrias Machado, grande fabricante de relógios e máquinas de precisão. Uma empresa de consultoria internacional contratada por valores escandalosos havia chegado à conclusão que sua cliente operaria com muito mais eficiência e lucratividade se todas as atividades desestimulantes e desinteressantes fossem reunidas no mesmo edifício. E era lá que Francisco trabalhava havia mais de quinze anos. Ao chegar à frente do prédio, olhou para a fonte do porco, olhou para o chão amarelo à sua direita, olhou para o topo do prédio e de repente sentiu uma sensação de deja vu, uma impressão incômoda de que algo ruim estaria para acontecer. Lembranças de seu sonho perturbador queriam vir à tona, mas elas vinham como borrões que desapareciam rapidamente. Em meio às imagens misturadas que apareciam em sua mente ele se viu em uma sala de reuniões, apresentando para os demais presentes gráficos inúteis impressos em grandes folhas presas a um suporte de madeira. Quando olhou para os presentes observou que na verdade eram engraçadinhos chimpanzés vestidos com terno e gravata jogando bananas uns nos outros.

Enquanto ponderava sobre o significado que esta imagem poderia ter, Francisco sentiu alguém tocando no seu ombro e viu seu amigo Leonardo, que acabara de chegar.

- E aí, Chico! Vamos trabalhar ou você vai ficar aí parado feito um abobado?

Francisco saiu do transe em que se encontrava e, sorrindo para Leonardo, caminhou com seu amigo rumo à entrada do edifício. Os dois foram conversando até o elevador, que felizmente funcionava, e subiram juntos até o decimo sétimo andar.

A porta do elevador se abriu revelando um grande salão acarpetado, com horrorosas janelas amarelas ao fundo. Tal qual trincheiras em um campo de batalha primitivo, divisórias cortavam o salão e separavam as áreas de trabalho dos funcionários em pequenos cubículos climatizados e à prova de som. Bem no meio do salão, no entanto, várias divisórias haviam sido removidas e, na área livre resultante, várias almofadas haviam sido espalhadas. Em um grande almofadão vermelho estava sentado um homem de longos cabelos e barbas brancas vestindo uma túnica branca. Todos os funcionários do andar estavam dispostos em volta deste homem, alguns em pé e alguns de joelhos.

O homem estava de olhos fechados e, possivelmente alertado pelo agradável sinal sonoro monotônico emanado pelo elevador quando chegou ao andar, estendeu seu dedo indicador esquerdo apontando diretamente para o rosto de Francisco. Leonardo permaneceu escondido no fundo do elevador e, quando Francisco saiu, permaneceu lá apertando freneticamente a botoeira enquanto a porta se fechava.

O homem permaneceu em silêncio e seu dedo acompanhou a trajetória de Francisco enquanto este caminhava para se juntar aos seus colegas. Os primeiros quinze minutos de silêncio foram um pouco constrangedores, mas no momento em que todos estavam prestes a relaxar o homem ergueu sua mão aberta para o alto e, sem abrir seus olhos, disse:

- Levante a mão quem pretende vir trabalhar amanhã.

Todos levantaram suas mãos. O homem replicou com uma voz dura e seca:

- Francisco, por que você levantou sua mão?

Todos olharam para Francisco. As pessoas que estavam perto se afastaram, como se de repente ele tivesse sido diagnosticado como portador de uma horrível doença contagiosa. Francisco olhou para o homem barbado com confusão em seu olhar.

- Francisco, hoje começa uma nova trajetória em sua vida. Uma trajetória que começa com você abandonando este prédio e nunca mais voltando.

Francisco ficou um pouco confuso. Ele nunca havia sido demitido antes, por isso não estava acostumado com a sensação de insegurança e vergonha que de repente tomava conta de seu corpo. Também nunca fora de temperamento agressivo, mas naquele momento ele só sentia vontade de segurar esse homem pelo cabelo e golpear sua cabeça repetidas vezes contra a quina de uma mesa próxima.

Francisco foi desperto de seu devaneio por uma moça que o segurou pelo braço e pediu para acompanhá-lo. Dois homens em ternos pretos, pertencentes ao setor de segurança corporativa, acompanharam os dois enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao seu cubículo.

- Você não deve encarar esta demissão de um jeito tão negativo. Tudo bem que, para todos os efeitos, você está sendo mandado embora por justa causa, mas pense que, uma vez no fundo do poço, todos os caminhos levam para o topo, não é mesmo?

A jovem gestora de recursos humanos observou que Francisco ainda aparentava estar em estado de choque.

- Agora você está saindo, ou digamos melhor, está sendo violentamente arrancado de sua zona de conforto, mas isso não é uma coisa tão ruim assim. Muitas pessoas em situação similar à sua vieram a fazer coisas grandiosas. Por exemplo, não sei se você sabia que Napoleão Bonaparte quando jovem trabalhava como padeiro e sonhava em ser jogador de futebol. Um dia ele foi demitido e entrou em um estado de depressão profunda, tentou se matar diversas vezes saltando desde o topo da torre Eiffel, mas, quem diria, pouco depois ele conseguiu se recuperar e se tornou imperador da França!

Francisco encaixotava seus poucos pertences em uma caixa de papelão enquanto pensava em qual seria a menor sequência de ações que poderiam levá-lo a se tornar Imperador do Brasil, e então percebeu que nenhum caminho que ele imaginou passava por continuar com seu trabalho de escritório chato, manipulando planilhas de dados e apresentando gráficos inúteis para chimpanzés engravatados em salas de reunião. Sorriu para si mesmo, enquanto a gestora de recursos humanos impacientemente mordia a ponta de uma caneta e os dois seguranças observavam atentos se ele estava roubando itens de propriedade da empresa. Ele não demorou muito, então a comitiva se dirigiu até o elevador. Passaram pelo mesmo setor, onde agora o homem de barba branca, ainda de olhos fechados, sentado com as pernas cruzadas e suas mãos sobre os joelhos, flutuava a pouco mais de um metro do chão, com todos os funcionários em volta prostrados no chão em posição de adoração. Quando Francisco passou perto do homem, sussurrou:

- Obrigado.

O homem abriu seus olhos, apontou para Francisco e, com serenidade, disse:

- Nunca mais volte a pisar neste edifício.

Francisco foi escoltado até a portaria do edifício. No elevador encontrou com seu amigo Leonardo, que fingiu não reconhece-lo. Uma vez na portaria, a gestora de recursos humanos executou o pequeno ritual de desligamento, no qual o crachá do funcionário sendo desligado era quebrado em pedacinhos e espalhado pelo chão e posteriormente sua a carteira de trabalho era arremessada contra sua cara.

Oficialmente demitido, Francisco saiu do edifício com passos primeiro tímidos, que depois se tornaram mais confiantes. Caminhou até o meio do pátio, inspirou profundamente e admirou-se ao ver que o mundo ao seu redor parecia estar coberto de ouro, reluzindo de tantas oportunidades. Foi então que percebeu que já era meio dia, e que o reflexo dourado das janelas do edifício já haviam se deslocado até o preciso ponto em que ele se encontrava parado. Virou-se para a sua direita e olhou para a estátua do porco, que jorrava água pelo seu nariz, e viu claramente a estátua piscando para ele.

Esse dia era o primeiro dia de uma vida nova. E a odisséia Francisco estava apenas começando.

continua…

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