domingo, 29 de junho de 2014

A velhinha


- E então, o que você achou da introdução?
- Você quer uma opinião honesta?
- Sim, claro! Desembucha!
- Pois é, eu vi o que você tentou fazer. Quis fugir um pouco do lugar comum, mas ficou muito esquisito.
- O que ficou esquisito?
- Pega a personagem principal, por exemplo.
- A velhinha!
- Sim!
- O que é que tem de esquisito uma velhinha?
- Não é apenas o fato de ser uma velhinha, mas veja só, sua velhinha além de tudo é motoqueira!
- Mas é a coisa mais normal! Vai dizer que você nunca viu uma velhinha andando de moto?
- Eu não! E você?
- Pensando bem, eu também não. Mas acho que não tem nada de mais em imaginar uma velhinha motoqueira.
- Tá, além disso ela tem uma tatuagem de dragão de corpo inteiro.
- Que ela fez em sua juventude, nada anormal. Sabe como é, jovem adulta nos anos 60… Paz e amor… Experimentando os baratos do amor e das drogas…
- Sim, e somado a tudo a sua velhinha motoqueira e tatuada está em uma boate tomando cachaça e assistindo a um show de strip-tease.
- Pois então, vai me dizer que já viu uma personagem e ambientação assim?
- Eu nunca vi, mas quando você quer fazer algo original não se trata apenas de combinar elementos que ninguém nunca combinou antes. Se fosse assim, eu poderia escrever uma história sobre uma sanduicheira cor-de-rosa que adquiriu uma consciência e que caça coelhinhos por aí e esperaria que desse uma boa personagem.
- Olha, até que você tem uma idéia interessante aí…
- Mas não é! Tem que ser verossímil, senão não dá! Pega a sua velhinha: você me coloca uma personagem velhinha e já me vem à mente a imagem de minha avó. Uma velhinha motoqueira tatuada e boêmia não é verossímil. Assim como no caso da sanduicheira. O mundo não é feito de coelhinhos!
- É que você está focando no elemento errado. Tenta pensar agora nos motivos que levariam uma velhinha motoqueira tatuada estar em uma boate de strip tomando cachaça.
- Difícil, né! Sei lá, pegou o endereço errado do bingo?
- Seja um pouco mais imaginativo.
- Eu não sei, ela era dançarina de strip quando era jovem? É a cafetina?
- Você está esquecendo de algo…
- Deixa ler de novo… Ah sim, ela está segurando uma valise de couro.
- Sim. E…?
- A valise de couro está algemada na mão dela! Então, vai me dizer que além de tudo ela é espiã?
- Não, não é nada disso. Isso poderia ser apenas um indício de que o que ela carrega naquela valise é muito importante e ela não quer perder.
- Tá bom, mas seu conto não elabora muito mais do que isso. E aí, onde você quer chegar?
- A velhinha espera alguém, que por acaso é o dono da chave daquela algema.
- Quem é esse alguém?
- É alguém que jurou a ela amor eterno. É alguém que sempre se reunia com ela naquele mesmo lugar, quando ainda não era uma boate de strip e sim um inocente boliche. Um policial que, por não ter dinheiro para comprar uma linda aliança, deu a algema como um presente de noivado para ela. Por sinal, você sabia que a palavra “esposa" em castelhano significa exatamente isso, “algema”?
- Que idéia estúpida!
- Não é estúpida para ela! Ele guardou a chave, como símbolo de seu amor.
- E por que ele prendeu a algema nela?
- Ele não fez isso. Foi ela mesma que se algemou à maleta com todas as cartas e fotos que guardou de seu amor. Pena que, por causa do alzheimer, ela esqueceu que não tinha uma cópia da chave. E também esqueceu que seu amor já havia morrido há muito tempo.
- É essa história que você quer contar? É muito triste.
- Obrigado.
- Não quis dizer nesse sentido. Contar essa história é uma tortura para a protagonista. Você cria uma personagem assim, sozinha, deprimida, com alzheimer. O que você ganha contando a história dela? E o que tem a ver o fato de ela ser motoqueira?
- Essa moto era do amado dela. Uma Harley 77 verde.
- Peraí…Esse conto está começando a me soar familiar.
- Eu nunca disse que era um conto.
- Meu avô era policial e tinha uma Harley 77 verde. Ele ia deixar a moto para mim mas ela sumiu logo depois dele ter falecido.
- Ah é?
- E, agora que você mencionou, em seu leito de morte ele me entregou uma pequena chave, só que me pediu para jogá-la no rio mais fundo que eu encontrasse.
- E você jogou?
- Eu não, acabei me envolvendo com as coisas do dia a dia e esqueci.
- Você sabe de uma pessoa que está esperando por essa chave, né?
- Peraí… Você está me dizendo que essa velhinha é a minha avó?
- Na verdade, é algo mais importante do que isso.
- Como assim, mais importante? Eu nunca conheci minha avó, vai me dizer que ela está por aí, esperando em  uma boate que meu falecido avô apareça!
- Senta um pouco que eu preciso te contar uma coisa importante.
- O que é?
- Pedro, eu sou seu pai.


Silêncio.

- Peraí, não estou entendendo.
- É isso aí. Seu avô nunca te contou por que te adotou?
- Ele me disse que meu pai havia morrido eletrocutado enquanto consertava uma sanduicheira.
- Ele inventou essa história para te poupar do sofrimento de ter sido abandonado.
- Mas… Mas… Não é possível que você seja meu pai. Você é mais novo do que eu.
- Isto não vem ao caso, sua avó e eu decidimos que seria melhor não discutirmos esse fato.


Pedro olhou para esse estranho. Eles se conheceram fazia apenas vinte minutos, enquanto esperavam pelo trem na estação.

- Eu… não… entendo…
- Pedro, tudo bem se você chorar.
- Me chamo Roberto… Desculpa, é que passei minha vida inteira sem um pai… Agora você me aparece, assim, de repente, na estação de trem, e ainda me informa que minha avó está viva e bem.
- Eu não diria que bem. A coitada está com alzheimer e uma maleta algemada no braço, mas pelo menos está viva.


Pedro, quer dizer, Roberto, deu um abraço naquele homem que dizia ser seu pai.

- Pa… pai…
- Isso Pedro, pode chorar.
- É Roberto. Papai… Por que você me abandonou?
- Pedro, não tive muita opção. Eu estava sem dinheiro, não conseguia sustentar minhas baladas, muito menos uma criança. Tive que deixar você com seu avô e saí do Brasil em busca de emprego. Passei alguns anos morando na Nigéria. Agora eu sou um príncipe nigeriano e voltei, para tentar acertar os erros que cometi.
- Que bom, papai!
- E eu decidi que uma das formas de resolver os erros é passar parte de minha fortuna para você, meu filho.
- Eu não quero dinheiro, só saber que você está vivo já me deixa feliz!
- Mas eu insisto, filho. Eu tenho um patrimônio de dez milhões de dólares lá na Nigéria e eu pretendo transferir tudo para o Brasil. Desses dez milhões, vou te dar um milhão.
- Puxa, que boa notícia. Muito obrigado!
- Eu só estou com um pequeno problema… Para fazer uma transferência internacional de um valor assim preciso pagar uma taxa bancária, mas não tenho dinheiro para isso. Está tudo la na Nigéria. Preciso que você me ajude só a pagar essa taxa, mas assim que ela estiver paga vou poder te passar um milhão de dólares.
- Claro que posso te ajudar, pai. De quanto é a taxa?
- É quinze mil reais. Você pode fazer um cheque ao portador que eu me encarrego do resto.


Roberto preencheu e assinou o cheque na hora e entregou para aquele homem que, até pouco tempo atrás, era um total estranho.

- Pedro, obrigado. Vou acertar a transação e depois te ligo para pegar seus dados bancários.


O homem abraçou Roberto e se afastou quase correndo. Roberto olhou seu pai com lágrimas nos olhos, pensando em como esse homem iria ligar de volta se ele nunca tinha lhe passado seu número.


Roberto nunca mais veria seu pai, nem seu um milhão de dólares, nem os quinze mil reais que foram descontados de sua conta ainda no mesmo dia.


É no que dá confiar em um príncipe nigeriano.

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