sábado, 22 de novembro de 2014

A Iniciação


No meio da cela iluminada tenuemente apenas por uma pequena vela, o monge segurava um cálice com uma substância escura enquanto A Iniciada permanecia ajoelhada a seus pés com a cabeça abaixada. Entre eles, o corpo de um homem jazia sobre uma poça de sangue.

- Hoje você abandona o mundo dos homens para adentrar o mundo das sombras - disse o monge em voz solene. Em volta, diversas vozes femininas provenientes da escuridão recitavam um cântico monótono e repetitivo. - Para ser aceita no mundo das sombras, você rompeu os elos com a civilização através de três grandes provações.

A Iniciada manteve sua pose firme. Quando começara sua jornada, sentira medo e insegurança, mas hoje sua convicção era inabalável.

- Você demonstrou seu desligamento do mundo material ao abdicar de todas as suas posses terrenas. Para representar isto, você recebe agora a Corda do Andarilho, que deverá carregar amarrada em volta de sua cintura todos os dias do resto de sua vida.

O monge entregou uma fina corda, desgrenhada e carcomida. A Iniciada enrolou-a em volta de sua cintura e amarrou os extremos em um laço duplo.

- Você demonstrou seu desligamento da sociedade ao sobreviver sozinha nas Montanhas das Rubiáceas, mesmo à mercê dos elementos e das criaturas selvagens. Para representar isto, você recebe a Adaga Selvagem. Ela será sua companheira nas batalhas que ainda estão por vir.

A Iniciada recebeu a adaga, passou seu dedo indicador pelo fio da lâmina e pendurou-a na corda amarrada em sua cintura.

- Você demonstrou seu desligamento das emoções humanas ao assassinar seu homem amado. Como instrumento das sombras, você é uma máquina de matar. Nenhuma fraqueza humana irá te impedir de cumprir sua missão. Você recebe a Espada Voraz, cuja sede de sangue você recebe a incumbência de saciar.

Ao receber a espada, a Iniciada proferiu as palavras que, com medo de esquecer, ela passara os últimos dez dias repetindo em sua cabeça.

- Em minhas mãos, a Espada Voraz é um instrumento das sombras. Leve como o vento, rápida como um pássaro, com ela trarei terror a meus inimigos e descanso para suas almas. Hoje despertei humana, amanhã despertarei como um arma letal.

O monge estendeu o cálice para A Iniciada.

- Para encerrar suas provações, beba deste cálice o sangue do homem que um dia foi seu amante. Que o calor de seus últimos momentos de vida desapareça no seu coração gelado, que agora não nutre amor, mas determinação.

A Iniciada pegou o cálice com suas mãos trêmulas. Olhou para seu conteúdo, ainda morno, viscoso e de um vermelho escuro. Olhou para o corpo do homem à sua frente. Uma ligeira sensação de nervosismo percorreu seu corpo, mas lembrou-se do por quê estava fazendo tudo aquilo e, expulsando todas as dolorosas lembranças que de repente apareceram em sua mente, bebeu o conteúdo do cálice em grandes goles.

- Agora você é parte da Sombra. Você não tem mais um nome, já que sombras não têm nome. Você será chamada pelo seu número, vinte e três, o número da serpente.
- Não faz sentido, sombras tampouco têm “números” - resmungou uma voz das sombras.
- Quem disse isso??? - exclamou o monge irritado.

O monge olhou em volta. Silêncio. Contrariado, prosseguiu.

- Você deverá carregar em seu corpo a imagem da serpente. Esta imagem trará terror aos seus adversários.
- Por que logo ela ganha o direito de ser a serpente? Por que ela pegou o animal legal?

O monge virou-se irritado.

- Eu já te digo por que. Quem é você?
- Eu sou a número quatro.
- Olha aqui no Livro das Sombras. Tá vendo? No começo da página vinte e três tem uma serpente. No começo da página quatro tem um pato.

Outras vozes na escuridão começaram a rir.

- Pois é, então ela vai fazer uma tatuagem super legal de uma serpente assustadora que vai gelar o sangue do inimigo e eu vou ter a tatuagem de um pato! Quem tem medo de patos?
- Seria talvez mais assustador se fosse um carrapato? - outra voz das sombras deixou escapar, seguida de risadinhas abafadas. A número quatro olhou em volta com raiva, mas não foi possível ver quem havia falado.
- Chega! Quietas! Número quatro é pato, número vinte e três é serpente, e pronto! Não quero saber! Já agendei no ateliê de tatoo para todas fazerem as tatuagens e as figuras já foram escolhidas.

Outra voz surgiu do meio das sombras.

- Mas tem que ser essas tatuagens de corpo inteiro? E no rosto também? Não pode ser assim tipo um bichinho no tornozelo, ou algo mais discreto na nuca?
- Tem que ser de corpo inteiro! E no rosto também! Vocês têm que inspirar TERROR quando forem vistas, não é para ser um bichinho bonitinho e discretinho que só dê para ver quando vocês tiram a roupa!
- A dezessete ia aterrorizar muitos homens desse jeito! - alguém falou.
- Cala boca - respondeu a dezessete.

O monge estava ficando impaciente.

- Mestre, o problema é que uma tatuagem dessas é um compromisso um pouco sério demais né? Como vou fazer para procurar emprego se esse lance de Liga das Sombras não der certo?
- A Liga das Sombras é uma organização milenar, um compromisso com a Liga das Sombras é um compromisso para a vida inteira! Não tem mais volta! Você não pode sair da Liga, pelo menos não com vida.
- Mestre, mas faz só dois anos que você começou com essa história da Liga, até o começo do ano só tinha cinco sombras! E você nem mesmo escolheu o logotipo da organização direito! O Livro das Sombras está incompleto e você já fez oito revisões, é difícil afirmar que vai durar a vida toda…
- Toda organização milenar teve que começar algum dia, espero que você enxergue isso. Além do mais, quando eu começar o esquema de franquia já tenho engatilhado abrir pelo menos mais três unidades no Vale do Paraíba.
- Mesmo assim quem se ferra somos nós. Eu vou ter que tatuar uma tarântula enorme no meu rosto. Quem vai querer me empregar com uma tatuagem assim?

O monge parou um pouco para refletir.

- Eu não estou admitindo a possibilidade que a Liga das Sombras não vai dar certo, ok? Mas, no caso puramente hipotético de por alguma razão alguma de vocês precisar se desligar e não for executada por causa dessa traição então há alternativas, por exemplo você pode tentar disfarçar colocando uma outra tatuagem por cima, sabe, que nem mostram na televisão, ou fazer uma cirurgia de transplante de pele, sei lá.
- E o plano de saúde da Liga vai cobrar esse procedimento?

A discussão foi interrompida por um choro inconsolado vindo do meio da cela. O mestre se virou e viu a número vinte e três debruçada sobre o corpo de seu ex-amante.

- Mestre, precisava fazer a vinte e três matar o namorado dela? - perguntou uma voz vinda das sombras.
- O desligamento das emoções humanas era para ser algo simbólico, teria bastado queimar uma foto dela com o namorado, mas ela decidiu matar o rapaz e eu achei que seria uma boa idéia, eu até rabisquei como sugestão na margem do Livro das Sombras para depois colocar na nova revisão.
- O quê? Era opcional? Quer dizer que as outras vinte e duas só precisaram queimar uma foto para poderem ganhar esta porcaria de espada? - A Iniciada exclamou, com seu rosto vermelho e cheio de lágrimas. - E ainda precisei beber o sangue dele?
- Eu achei que tinha sido iniciativa sua, com todas as outras foi do jeito que falei. Quem foi que te explicou as provações?
- Foi a Janete, ela me falou que eu tinha que matar o Rodrigo!
- Sem nomes! Eu já falei, aqui ninguém tem nomes! Fale pelo número dela, a número treze. Número treze, é verdade isso?
- É sim, eu falei mesmo para ela matar esse traste, e ele está melhor morto posso te garantir.

A vinte e três olhou para a treze, para o corpo, e de volta para a treze. Limpou as lágrimas de seu rosto e se levantou bruscamente.

- Ah, então era isso! Eu sabia que o Rodrigo estava me traindo com alguém! Era você, sua vagabunda ordinária! - A Iniciada saltou com a Adaga Selvagem em mãos em direção à voz da numero treze, mas foi impedida de chegar ao seu alvo pela número sete e pela número quatro.
- Ai, se faz de inocente! O Rodrigo estava comendo metade da Liga das Sombras, era você que não queria enxergar - desdenhou a número treze enquanto usava a sua própria adaga para cortar uma cutícula.
- Eu te mato, sua piranha!
- E você ainda bebeu o sangue dele, se duvidar do jeito que ele era galinha é capaz de que ele tivesse AIDS!

Começou um pandemônio na pequena cela. Algumas das sombras apoiaram a número vinte e três, outras apoiaram a treze. Ficavam se insultando de todas as formas possíveis, se arranhando e puxando os cabelos umas das outras. Felizmente ninguém havia puxado as espadas.

- Comportem-se! COMPORTEM-SE! - a voz do monge retumbou pela pequena cela. O eco de sua ordem continuou reverberando por alguns segundos. - Vocês parecem crianças! A Liga das Sombras é algo sério, através dela vocês atingem um propósito que é maior do que a vida insignificante de vocês permitiria atingir! Vocês vão adquirir disciplina, domínio das artes marciais, vão aprender a dar mais importância a um ideal do que ao seu próprio bem estar, e vão ajudar a construir um mundo livre das injustiças.

As sombras voltaram cada qual para seu lugar. A vinte e três havia conseguido chegar até a treze e acertou um murro na boca dela, que ficou com os lábios inchados como se estivesse com uma laranja na boca.

- Suas intrigas mundanas não importam mais! O que importa é a Liga, entenderam?

Não se ouviu nenhum som da cela.

- Eu perguntei se ENTENDERAM!

Vozes tímidas responderam que sim.

- Não escutei você, vinte e três.

A vinte e três relutou mas finalmente disse que tinha entendido.

- Ótimo. Hoje também é um dia especial. Vinte e três marca os vinte e três tons de cinza do crepúsculo, é o número de sombras que sempre teremos na Liga. Hoje vou passar a primeira missão que vocês terão que cumprir. É uma missão de vital importância, digna de todo o esforço que vocês têm dedicado para a Liga.

Todas as sombras ficaram atentas. O treinamento delas fora duro e inclemente e estavam todas ansiosas para botar suas habilidades em prática.

- Números um a sete, vocês demonstraram ter diligência e movimentos precisos. Vocês irão limpar meu apartamento e lavar minhas roupas.

O monge esperou um pouco para ver se ouvia alguma coisa. Bem treinadas, nenhuma palavra foi ouvida delas.

- Oito a doze, vocês se movem com rapidez e possuem reflexos rápidos. Vocês vão a mercado fazer compras para o churrasco com futebol que vou fazer para meus amigos.

Novamente silêncio.

- Treze a dezessete, vocês dominam todo tipo de armamento. Vocês vão cozinhar e arrumar o salão de festas.

Finalmente, o monge se virou para o último setor das sombras.

- Dezoito a vinte e três, vocês são jovens e gostosas. Vocês têm que ficar bem bonitas porque um de meus convidados é um empresário que pode querer investir em minha startup, por isso vocês vão ter que impressioná-lo.

O silêncio sepulcral estava tão denso que poderia ser cortado com uma faca. O monge conseguia sentir que, desde a escuridão, o olhar de todas as sombras estava dirigido diretamente a ele. Nesse momento não pareceu uma idéia tão boa ter dado espadas para todas elas.

- Cada uma de vocês, sendo uma Sombra, foi treinada para obedecer sem questionar. Ao preparar um churrasco muito bom vocês vão provar para mim que estão prontas para os grandes desígnios que tenho preparados para vocês.

O monge olhou em volta. A vinte e três, depois de chutar violentamente o corpo do Rodrigo, havia se juntado às outras sombras. Embora não conseguisse vê-las, conseguia sentir sua presença e não conseguia deixar de sentir orgulho pelo que cada uma delas tivera que passar.

- Vocês podem ir. Levem o corpo e livrem-se dele. Usem o elevador de serviço para não chamar a atenção do porteiro e tomem cuidado para não acordar a minha mãe quando passarem pela sala.

- Sim, mestre - responderam todas as vozes em uníssono.

Uma brisa apagou a vela. Quando o monge apertou o interruptor na parede e uma luz fluorescente iluminou o seu quarto, as sombras já haviam desaparecido. Exceto a vinte e três que ficara ajoelhada no chão esfregando com uma escova a mancha de sangue no tapete.

A Liga das Sombras estava em ação e nada poderia ser feito para impedir que cumprissem sua missão.

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