domingo, 30 de março de 2014

Cidade Desmorta - o prelúdio

Era uma tarde ensolarada de sábado quando o sargento Paixão e o cabo Oliveira chegaram ao local do chamado. Era uma rua sem saída com alguns carros estacionados nos dois lados. Quatro pessoas estavam discutindo em frente a uma pequena igreja evangélica. Dois homens estavam vestindo camisa social e gravata, um estava vestindo uma camisa de futebol e a última pessoa, uma senhora dona de casa, estava empunhando uma vassoura e gritando histericamente para os outros três.

O cabo Oliveira conseguiu impedir a tempo que a senhora quebrasse o cabo da vassoura na cabeça do corintiano, enquanto esta gritava: “Você me respeita, pirralho!”. O sargento Paixão pensou em como odiava atender chamados de briga de vizinho, especialmente aos sábados, mas pensou também em como poderia ser pior. Naquele mesmo momento seus colegas estavam participando de um tiroteio em uma favela do outro lado da cidade, e se houve uma coisa que dezessete anos na Polícia Militar conseguiram provocar no sargento foi uma alergia a ferimentos de bala.

- A senhora se controle senão vamos ter que levá-la para a delegacia! - exclamou o sargento. Ele tinha um tom de voz forte que intimidava qualquer um. E que soava engraçado vindo de alguém com seu nome.

Suas palavras surtiram efeito e a dona de casa parou de se debater nos braços do Oliveira. Ela, no entanto, continuou ofegante.

O sargento virou-se para um dos engravatados e começou a falar.

- Recebemos um chamado alertando sobre desordem provocada por sua igreja.
- Oficial, veja bem, está tudo sob controle, os cultos da tarde são um pouco altos mas nós conversamos com os moradores locais e eles não reclamam…

A dona de casa exclamou:

- Ah, é? Não reclamam? Você está de brincadeira? É o dia inteiro entrando e saindo gente, pastor gritando desesperado, essas músicas chatas tocando alto, eu tentando assistir minha novelinha e não consigo escutar meus pensamentos!

O sargento prestou atenção e reparou que desde o interior da igreja podia ser ouvida uma comoção. Muitas pessoas falando alto, alguns gritos.

- Foi a senhora que fez o chamado? - perguntou o sargento.
- Fui eu sinsinhô.
- No chamado está registrado que a senhora ouviu o barulho de tiros.
- Ouvi sim, foi aí que eu achei que a bagunça passou do limite.

O sargento olhou com uma cara feia para os engravatados. Um deles estava suando em profusão. O outro olhava nervosamente para o corintiano, que falou.

- Essa velha é louca, a gente conhece ela, fica inventando qualquer coisa para acabar com o nosso culto. Nois é filho de Deus, tamos aí tentando louvar um pouquinho e tal, mas fica difícil com a velha reclamando.
- Você cala essa boca moleque! Não aceito esse desrespeito!

O cabo Oliveira, ao tentar segurar a dona de casa, levou um golpe do cabo de sua vassoura. O sargento perguntou para os engravatados:

- Quem é o responsável pela igreja? Precisamos obter esclarecimentos.
- Ah, o responsável é o pastor Juarez, ele está meio ocupado agora e não pode vir.
- Pois mande ele vir agora mesmo. Agora vamos esclarecer que história é essa de barulho de tiro.

Um dos engravatados correu para dentro da igreja enquanto o outro ficou cuidando da entrada. De tempos em tempos olhava nervoso para o interior. Enquanto o outro não chegava com o pastor, a velha voltou a falar:

- Já é uma desgraça ter que ouvir os cultos dia a dia, mas quando eles fazem essas sessões de descarrego é o pior! A igreja inteira fica gritando, e é tudo uma farsa! A menina que estava “possuída” é daqui do bairro, conheço ela, e ela é bem comportada. O pastor fica inventando esses descarrego para impressionar os trouxas que vem de fora.

O sargento Paixão começou a ficar alarmado:

- O que o pastor fez com a menina?

O engravatado já ia começar a explicar sobre o poder divino de Jesus e outras ladainhas quando a senhora interrompeu com muita grosseria:

- Ah, o senhor tem que ouvir as barbaridades que o pastor fala! A menina é um doce, mas ele fica gritando coisas do tipo: abandona este corpo, Satanás! Este corpo não te pertence! E ficou dando tapas no rosto da menina. Eu estava indignada, mas os pais da menina estavam lá dentro, na primeira fila, então deixei passar. Mas quando ouvi o barulho de tiro eu não aguentei e chamei a polícia.

Nisto o engravatado que havia saído apareceu com o pastor. O pastor vestia um terno e gravata e estava muito nervoso. Talvez fosse porque sua roupa estava coberta de sangue.

O sargento olhou para isso e exclamou:

- O que está acontecendo neste lugar? Por que sua roupa está manchada de sangue?

O pastor tentou explicar.

- Ah, bem, não é nada de mais, oficial… Coisas da igreja…
- Coisas da igreja é o cacete, vamos já para a delegacia!
- Não! Espere, você não entende!

O pastor olhou nervosamente para o interior da igreja. Lá de dentro algumas poucas pessoas olhavam de volta para ele.

- Oficial, eh, é comum fazermos as sessões de descarrego, sabe? O capeta aproveita qualquer chance para ocupar o corpo de pessoas fracas e é nossa obrigação usar o poder de Cristo para remove-lo, principalmente se for alguém de nossa igreja e se sua família estiver em dia com o dízimo.
- Não me interessam os seus rituais. Eu quero é saber por que houve barulho de tiro e por que sua roupa está cheia de sangue.
- Bom, é que às vezes o poder de Cristo não é forte o suficiente.

O sargento olhou com indignação para o pastor.

- Essa menina que vocês estavam exorcizando. Eu quero vê-la agora!

O pastor olhou nervosamente para os dois engravatados. Olhou para o cabo Oliveira, para a senhora aposentada, e finalmente para o sargento.

- Tudo bem, vamos lá.

O sargento falou para o cabo Oliveira.

- Você fica aqui esperando e não deixa ninguém ir embora.

O cabo observou enquanto o sargento entrava na igreja e as pessoas abriam caminho para ele. O pastor abriu uma porta no fundo e o sargento entrou com ele. A porta de fechou atrás deles.

O corintiano tentou puxar um papo sobre futebol para aliviar um pouco a tensão, quando de repente se ouviram dois tiros. A porta dos fundos se abriu violentamente e o sargento e o pastor saíram correndo. O sargento segurava com força sua mão esquerda contra seu pescoço, de onde jorrava sangue. Na sua mão direita estava a sua arma, soltando fumaça pelo cano. As pessoas em volta, ao virem isto, começaram a gritar desesperadas e a sair da igreja. Os engravatados tentavam acalmar as pessoas, enquanto o corintiano aproveitou a deixa para vazar.

- Paixão, o que aconteceu? - perguntou Oliveira - O que havia lá dentro? Em quem você atirou?

O sargento sentou-se na calçada, com a cabeça virada para o chão.

- Estou bem. Por favor chame reforços.

O pastor olhava nervosamente para o sargento. A velha gritava raivosa, dizendo que tinha razão, que era uma igreja de degenerados.

Oliveira foi até a viatura e chamou por reforços. Em seguida perguntou para o pastor:

- Em quem vocês atiraram?
- Ahn, eh, não importa, está tudo bem, ela está em um lugar melhor agora, nos braços de Cristo.
- Eles atiraram na menina, ai meu Deus do céu - gritou a velha.

O cabo Oliveira não conseguia acreditar nesse papo. Segurou o pastor pelo colarinho e perguntou:

- Vocês atiraram na menina?
- Ah, não tinha outra alternativa, cabo! Ela estava possuída!

Oliveira olhou para o sargento, que já estava delirante. Olhou de novo para o pastor e disse:

- Quero ver o corpo. Você está ferrado seu filho da puta! Não sei o que você fez com o sargento, nem com essa menina, mas vou te meter numa cela e jogar a chave fora seu desgraçado! Quero ver o corpo da menina!

O pastor acenou para os dois engravatados os acompanharem. Os quatro entraram na igreja, agora quase vazia. As cadeiras de plástico estavam bagunçadas e o corintiano esbarrou neles enquanto corria para fora da igreja carregando uma caixa de som enorme nas costas. Um dos engravatados tentou segurá-lo, sem sucesso, mas o pastor nem prestou atenção.

Chegaram à porta. O pastor abriu e entrou primeiro. O cabo entrou atrás. Os engravatados ficaram esperando do lado de fora. A porta levava para uma pequena sala sem móveis em cujo centro havia um tapete, que estava coberto de sangue. O pastor olhou horrorizado para o tapete.

- Onde está o corpo? - gritou o cabo.
- Ela estava aqui! - respondeu desesperado o pastor.
- Então ela não morreu?
- Não é possível, ela levou três tiros, ai Jesus amado este pesadelo não termina!

O cabo estava intrigado. Que raios estava acontecendo? Ambos olharam para a parede dos fundos quando escutaram o rangido de uma porta, que estava entreaberta e que abriu-se de repente com um estrondo quando uma rajada de vento entrou. O cabo só percebeu agora que havia um rastro de sangue que ia até a porta. Ele correu e saiu por ela, indo parar em um beco que dava para uma avenida. Olhou para os lados e não viu ninguém. Correu até a avenida e, chegando lá, tampouco viu viva alma. Voltou para a igreja e exclamou para o pastor:

- Você está preso! Ocultação de cadáver é agravante para homicídio doloso. Você está em uma enrascada!
- Você não entende, ela está solta! Nós fizemos o que tinha que ser feito, mas não foi o suficiente, agora ela está solta em São Paulo!

O cabo Oliveira fez uma chave de braço no pastor e começou a algema-lo. Assim que terminou, os dois ouviram gritos vindos do salão da igreja, onde estavam os engravatados. Oliveira abriu a porta e viu o sargento Paixão. Ironicamente, ele segurava o coração ainda palpitante de um dos engravatados, cujo corpo estava estendido no chão, em meio a uma poça de sangue. O outro engravatado havia desaparecido. A boca do sargento estava cheia de sangue, e o olhar que ele dirigia para o cabo estava tão cheio de fúria quanto vazio de vida.

Oliveira ouviu o barulho do pastor, aos tropeços, fugindo pela porta dos fundos. Quando o sargento saltou em seu pescoço, Oliveira só teve tempo de pensar:

- Ih, fudeu.

continua

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